segunda-feira, julho 06, 2009

(...)
Podemos agora feridos que
estamos ambos de morte
quais cavaleiros de outros tempos
abraçarmo-nos
adormecer
e morrer juntos numa só respiração
Antes no entanto direi as palavras:
não para as atirar contra
o precipício da vida
apenas um memorial breve da criação
nada mais
Digo então
agora que o fim se aproxima
andorinha
e faz-se azul de Primavera
Digo
adeus
e todas as despedidas se alinham
no horizonte que se fecha

Eugénia de Vasconcellos

sábado, dezembro 13, 2008



vens de repente com a voracidade
de um pássaro nocturno que não chamei
e a porta fecha-se sobre as minhas ancas
e a noite bebe o hálito que largas na minha pele
enquanto os espelhos escondem o rasto
de todos os segredos que guardavas

por momentos o amor desenha-se desta única maneira
mas eu sei que és apenas um inquilino temporário
habitando o meu corpo as horas que roubaste
em ondas de culpa e sombra

e sei também que hás-de sair de mim
como de um povo inimigo
procurando um gesto de perdão que não existe
e o amor torna-se subitamente num lugar incómodo
tenho pressa dirás tenho pressa
e a noite fecha-se do lado dos dedos
que procuram ainda o lugar do sono

fica comigo peço mas tu não me ouves
e eu sei que vou voltar a esperar por ti na vida que me resta
e em todas as vidas e em todas as mortes
até ao dia em que difinitivamente
despeças o teu corpo do meu
e eu repita fica comigo e tu
desapareças

como quem esteve só à espera
de ventos favoráveis

Alice Vieira

domingo, novembro 16, 2008


Rafal Bednarz

Venho rendida,
Já não apaixonada, amor,
A paixão com a persistência
Deixou de queimar,
Como a dor com a persistência
Se deixa de sentir.
Agora venho rendida e calma,
Igual e mansa,
Sem marés vivas
Nem dias de levante,
Sou uma esperança constante,
Uma constante desesperada,
Só, sempre sozinha
Pelos mornos areais alaranjados
Onde ondas poentes
Se quebram em alvura.
Só, sempre pensando em ti,
Tentando não pensar,
Descer ao profundo do mar,
Revolver em mim o universo
Novo infinitamente;
Mas tu vens mais forte que o mar,
Mais forte do que eu,
E em vão tento convencer-me
Que não és,
Que não passas de abstracto desejo,
Sentimento incompleto,
Sem poder condensar-se.

Teresa Balté

domingo, janeiro 27, 2008

el cuerpo cae desmayado en la arena de la noche

a madrugada é prenhe de ti nesta ausência

revolvo o corpo nesta praia de jejum

há guerras e incêndios nos olhares em redor

quando convulso a respiração em teu choro

e mordo as últimas letras do teu nome


Fernando Dinis, em Poema - Antologia de Poesia Portuguesa Actual

quarta-feira, dezembro 05, 2007

Quando amanhece penso:
Encontro-te no vento
virás abraçar-me como os ramos da árvore
e chegaremos ao coração da cidade

Ao meio-dia sei:
A distância do meu corpo ao teu grito
corresponde à do teu sopro ao meu ouvido
eis a anatomia do silêncio

De tarde fico exausta:
Circulo pelas ruas e roço-me nas praças


À noite adormecemos:
Será que te lembras? será que me lembro?

Amanhã alegro-me de novo:
Imagino a floresta, parto o espelho
e recomeço a ir ao teu encontro.

Teresa Balté

quarta-feira, outubro 24, 2007


Yuri Bonder

…o que dói às aves
Não é o serem atingidas, mas que,
Uma vez atingidas,
O caçador não repare na sua queda



Daniel Faria

terça-feira, outubro 16, 2007

El Puente

Si me dicen que estás al otro lado
De un puente, por estraño que parezca
Que estes al otro lado y que ne esperes,
Yo cruzaré ese puente.
Dime cuál es el puente que separa
tu vida de la mía,
en qué hora negra, en qué ciudad lluviosa,
en qué mundo sin luz está ese puente
y yo lo cruzaré.

Amália Bautista

segunda-feira, outubro 01, 2007

que há-de ser de nós?

Já viajámos de ilhas em ilhas
já mordemos fruta ao relento
repartindo esperanças e mágoas
por tudo o que é vento

Já ansiámos corpos ausentes
como um rio anseia pela foz
já fizemos tanto e tão pouco
que há-de ser de nós?

Que há-de ser do mais longo beijo
que nos fez trocar de morada
dissipar-se-á como tudo em nada?

Que há-de ser, só nós o sabemos
pondo o fogo e a chuva na voz
repartindo ao vento pedaços
que hão-de ser de nós

Já avivámos brasas molhadas
no caudal da lágrima vã
e flutuando, a lua nos trouxe
à luz da manhã

Reencontrámos lágrimas e riso
demos tempo ao tempo veloz
já fizemos tanto e tão pouco
que há-de ser de nós

Que há-de ser da mais longa carta
que se abriu, peito alvoroçado
devolver-se-á: «endereço errado?»

Já enchemos praças e ruas
já invocámos dias mais justos
e as estátuas foram de carne
e de vidro os bustos

Já cantámos tantos presságios
pondo o fogo e a chuva na voz
já fizemos tanto e tão pouco
que há-de ser de nós?

Que há-de ser da longa batalha
que nos fez partir à aventura
que será que foi quanto é quanto dura

Que há-de ser, só nós o sabemos
pondo o fogo e a chuva na voz
repartindo ao vento pedaços
que hão-de ser de nós

Sérgio Godinho

sexta-feira, setembro 07, 2007

quanto tempo

quanto tempo,
antes que a luz do dia, breve,
abandone os nossos corpos
ou a noite deixe de ser
estas horas benevolentes
nas quais nos perdemos?

quanto tempo até que a hesitação
mostre a face da sua insignificância
frente às horas,
e o dia se mostre surpreendemente curto
para os gestos de amor?

quanto tempo ainda se passará
neste jogo de espelhos
para que percebas o outro,
e o tomes nos lábios?

quanto tempo
até que não haja mais tempo?

silvia chueire, por favor um blues

sábado, agosto 18, 2007

Ode descontínua e remota para flauta e oboé. De Ariana para Dionísio, I

É bom que seja assim, Dionisio, que não venhas.
Voz e vento apenas
Das coisas do lá fora

E sozinha supor
Que se estivesses dentro

Essa voz importante e esse vento
Das ramagens de fora

Eu jamais ouviria. Atento
Meu ouvido escutaria
O sumo do teu canto. Que não venhas, Dionísio.
Porque é melhor sonhar tua rudeza
E sorver reconquista a cada noite
Pensando: amanhã sim, virá.
E o tempo de amanhã será riqueza:
A cada noite, eu Ariana, preparando
Aroma e corpo. E o verso a cada noite
Se fazendo de tua sábia ausência.

Hilda Hilst

terça-feira, julho 24, 2007

Espectador de mim mesmo

Tenho uma espécie de dever de sonhar sempre, pois, não sendo mais, nem querendo ser mais, que um espectador de mim mesmo, tenho que ter o melhor espectáculo que posso. Assim me construo a ouro e sedas, em salas supostas, palco falso, cenário antigo, sonho criado entre jogos de luzes brandas e músicas invisíveis.

Fernando Pessoa

quarta-feira, julho 04, 2007

querer

é querer ter os fins de tarde solarengos. é querer ter o que traz o vento que bate ao de leve na cara. é querer ser o calor do afago no pescoço. é querer ser pedra de calçada pisada por passos de bailarina. é querer morder a maçã mais vermelha do pomar. é querer ser nota de música - afinadíssima! é querer poder cheirar a almofada. é querer deitar cedo. é querer enroscar dedos mindinhos. é querer poder correr de olhos fechados. é querer nadar no mar às escuras. é querer ser a maçã mais vermelha do pomar. é querer ser ombro nu. é querer ser o sol dos finais de tarde. é querer ser um silêncio abafador de ruído. é querer ser passos de bailarina. é querer ser almofada. é querer ter arma. é querer ser bala. é querer ser sono. é querer ser o vento que bate na cara. é querer ser rua apertada. é querer esconder debaixo da cama certos passados pequeninos. é querer ser fome. é querer ser o bolo de aniversário. é querer ser o pescoço afagado. é querer ser aperto de mão. é querer ser dedo mindinho. é querer dormir às quatro e meia. é querer dar pontapés no tempo e marcar golo. é querer ser um nome. é querer ter um nome. é querer gritar um nome.

Joana, aqui

domingo, junho 10, 2007

Teme-se que se tenha afogado


Jonas Valtersson

De repente ninguém sabe onde estás,
o teu fato negro como algas, o teu rosto
barbudo escorregadio como foca.

Alguém olha pelas crianças.
Avanço até à fímbria da água, agarrando-me à toalha
como um véu de viúva sobre mim.

Nenhum dos nadadores condiz.
Muito baixos, corpulentos, de barba feita,
erguem-se da ressaca, a água
escorrendo-lhes pelos ombros.

As rochas despontam junto à costa como cabeças.
A barrilha espalha-se como um fato negro esfarrapado
e não te consigo encontrar.

O meu estômago começa a contrair-se como que
para vomitar água salgada.

quando subindo a areia ao meu encontro vem
um homem que se parece muito contigo,
a sua barba eriçada como as ervas da praia, o seu fato
negro como uma concha húmida contra o seu corpo.

Aproximando-se, afinal ele
és tu - ou quase.
Quando se perde alguém nunca é
exactamente a mesma pessoa que regressa.

Sharon Olds


quinta-feira, junho 07, 2007


Hanne Piasecki

Se uma pausa não é fim
silêncio nâo é ausência,
se um ramo partido não mata uma árvore,
um amor que é perdido,será acabado?

um ouvido que escuta
uma alma que espera...
-uma onda desfeita
É ou já não era?

Nuvem solitária,
silenciosa e breve,
nuvem transparente,
desenho etéreo de anjo distraído...

nuvem,
esquecida em céu de esperança,
forma irreal de sonho interrompido...

nuvem,
luz e sombra,
forma e movimento,
fantasia breve de ânsia de infinito...

nuvem que foste
e já não és:
desejo formulado e incompreendido.

Ana Hatherly

sexta-feira, junho 01, 2007

Atravessei contigo a minuciosa tarde
deste-me a tua mão, a vida parecia
difícil de estabelecer
acima do muro alto
folhas tremiam
ao invisível peso mais forte.
Podia morrer por uma só dessas coisas
que trazemos sem que possam ser ditas:
astros cruzam-se numa velocidade que apavora
inamovíveis glaciares por fim se deslocam
e na única forma que tem de acompanhar-te
o meu coração bate.


José Tolentino de Mendonça

terça-feira, maio 29, 2007

Mensagem à poesia

Não posso
Não é possível
Digam-lhe que é totalmente impossível
Agora não pode ser
É impossível
Não posso.
Digam-lhe que estou tristíssimo, mas não posso ir esta noite ao seu
encontro.

Contem-lhe que há milhões de corpos a enterrar
Muitas cidades a reerguer, muita pobreza pelo mundo.
Contem-lhe que há uma criança chorando em alguma parte do mundo
E as mulheres estão ficando loucas, e há legiões delas carpindo
A saudade de seus homens; contem-lhe que há um vácuo
Nos olhos dos párias, e sua magreza é extrema; contem-lhe
Que a vergonha, a desonra, o suicídio rondam os lares, e é preciso
reconquistar a vida
Façam-lhe ver que é preciso eu estar alerta, voltado para todos os caminhos
Pronto a socorrer, a amar, a mentir, a morrer se for preciso.
Ponderem-lhe, com cuidado – não a magoem... – que se não vou
Não é porque não queira: ela sabe; é porque há um herói num cárcere
Há um lavrador que foi agredido, há um poça de sangue numa praça.
Contem-lhe, bem em segredo, que eu devo estar prestes, que meus
Ombros não se devem curvar, que meus olhos não se devem
Deixar intimidar, que eu levo nas costas a desgraça dos homens
E não é o momento de parar agora; digam-lhe, no entanto
Que sofro muito, mas não posso mostrar meu sofrimento
Aos homens perplexos; digam-lhe que me foi dada
A terrível participação, e que possivelmente
Deverei enganar, fingir, falar com palavras alheias
Porque sei que há, longínqua, a claridade de uma aurora.
Se ela não compreender, oh procurem convencê-la
Desse invencível dever que é o meu; mas digam-lhe
Que, no fundo, tudo o que estou dando é dela, e que me
Dói ter de despojá-la assim, neste poema; que por outro lado
Não devo usá-la em seu mistério: a hora é de esclarecimento
Nem debruçar-me sobre mim quando a meu lado
Há fome e mentira; e um pranto de criança sozinha numa estrada
Junto a um cadáver de mãe: digam-lhe que há
Um náufrago no meio do oceano, um tirano no poder, um homem
Arrependido; digam-lhe que há uma casa vazia
Com um relógio batendo horas; digam-lhe que há um grande
Aumento de abismos na terra, há súplicas, há vociferações
Há fantasmas que me visitam de noite
E que me cumpre receber, contem a ela da minha certeza
No amanhã
Que sinto um sorriso no rosto invisível da noite
Vivo em tensão ante a expectativa do milagre; por isso
Peçam-lhe que tenha paciência, que não me chame agora
Com a sua voz de sombra; que não me faça sentir covarde
De ter de abandoná-la neste instante, em sua imensurável
Solidão, peçam-lhe, oh peçam-lhe que se cale
Por um momento, que não me chame
Porque não posso ir
Não posso ir
Não posso.

Mas não a traí. Em meu coração
Vive a sua imagem pertencida, e nada direi que possa
Envergonhá-la. A minha ausência.
É também um sortilégio
Do seu amor por mim.
Vivo do desejo de revê-Ia
Num mundo em paz. Minha paixão de homem
Resta comigo; minha solidão resta comigo; minha
Loucura resta comigo. Talvez eu deva
Morrer sem vê-Ia mais,
sem sentir mais
O gosto de suas lágrimas, olhá-la correr
Livre e nua nas praias e nos céus
E nas ruas da minha insônia.
Digam-lhe que é esse
O meu martírio; que às vezes
Pesa-me sobre a cabeça o tampo da eternidade e as poderosas
Forças da tragédia abastecem-se sobre mim, e me impelem para a treva
Mas que eu devo resistir, que é preciso...
Mas que a amo com toda a pureza da minha passada adolescência
Com toda a violência das antigas horas de contemplação extática
Num amor cheio de renúncia. Oh, peçam a ela
Que me perdoe, ao seu triste e inconstante amigo
A quem foi dado se perder de amor pelo seu semelhante
A quem foi dado se perder de amor por uma pequena casa
Por um jardim de frente, por uma menininha de vermelho
A quem foi dado se perder de amor pelo direito
De todos terem um pequena casa, um jardim de frente
E uma menininha de vermelho; e se perdendo
Ser-lhe doce perder-se...
Por isso convençam a ela, expliquem-lhe que é terrível
Peçam-lhe de joelhos que não me esqueça, que me ame
Que me espere, porque sou seu, apenas seu; mas que agora
É mais forte do que eu, não posso ir
Não é possível
Me é totalmente impossível
Não pode ser não
É impossível
Não posso.

Vinicius de Moraes

terça-feira, maio 22, 2007

a carta

Da carta que não chegou às tuas mãos, ficou
um passado memorável. Nela constavam os
pequenos episódios que vivemos juntos. Rasguei-a
junto ao rio, fiquei a olhar os pedaços de papel
serem absorvidos pelas águas turvas. A tentativa
de apagar finalmente o nosso passado. Dirias
que não havia necessidade, dirias que o que vivêramos
não valia assim tanto, nem mesmo três folhas escritas
com o coração nas mãos, a arder. Eu sorriria diante de
ti como alguém que morresse. Despiria as roupas
e lançar-me-ia na corrente fria. Tentaria recuperar
o que conseguisse, pedaço a pedaço, até afogar-me de vez.

Só existem duas razões para mexer numa ferida.
Curá-la, ou abri-la ainda mais.


Fernando M. Dinis

terça-feira, maio 08, 2007

Ajuda-me a esquecer-te

...
Ajuda-me a esquecer-te, que não estou de todo preparada para te amar até ao fim dos meus dias, que grande chatice me foste arranjar, agora, resolve-a, faz qualquer coisa, ajuda-me a esquecer-te.

um amor atrevido, aqui

domingo, abril 15, 2007


Bernd Mayr

Quando eu me apaixonei
doía tanto tudo:
eram espelhos e vidros
eram veias cortadas nas palavras

Quando eu me apaixonei
tudo era tão doído:
sentava-me de noite e tudo
à minha frente: imagens como filmes,
a paixão aos bocados e pensar
que morria

(excessos de saudades
desses tempos)

Ana Luisa Amaral

sábado, março 24, 2007

Das duas de mim

Das duas de mim só percebeste
A louca
A voz de íntima nudez
O grito surdo da fêmea.

Das duas de mim
Só percebeste a outra
A dos ventos soltos
Cabaças no ventre
E um demónio
Nos cabelos

Das duas de mim
Só percebeste a sombra
A embriaguez do vinho
O brilho da palavra
O sonho

Agora que um mapa estranho
Traçou na face os caminhos da santa
O sonho apareceu despido
Ainda voltas
De vez em quando
Com as palavras da louca

Paula Tavares

quarta-feira, março 07, 2007

espero

dei-te os dias mais preciosos,
as mãos e o corpo febris,
o pensamento lúcido,
os olhos lavados de ti.

esperei-te,
só se espera a vida.
as tuas palavras costuradas a mim
falavam-me do teu amor.

escuto os dias
desde que me deixaste,
rumo a um deserto,
no silêncio do tempo.

o tempo, meu amor,
é um universo a dançar nos corpos
atravessados de angústia.

espero, ao olhar
a distância de um oceano,
que venhas.
a felicidade é um dia possível,
se estás.

silvia chueire

segunda-feira, fevereiro 19, 2007



Nunca deixes de me escrever
como se o tempo das palavras fosse o dos regressos
confirmado na existência e docilidade das pedras

Nunca deixes de me sentir

Sandra Costa

sábado, janeiro 20, 2007

Príncipe

Príncipe:

Era de noite quando eu bati à tua porta
e na escuridão da tua casa tu vieste abrir
e não me conheceste.
Era de noite
são mil e umas
as noites em que bato à tua porta
e tu vens abrir
e não me reconheces
porque eu jamais bato à tua porta.
Contudo
quando eu bati à tua porta
e tu vieste abrir
os teus olhos de repente
viram-me
pela primeira vez
como sempre de cada vez é a primeira
a derradeira
instância do momento de eu surgir
e tu veres-me.
Era de noite quando eu bati à tua porta
e tu vieste abrir

e viste-me
como um náufrago sussurrando qualquer coisa
que ninguém compreendeu.
Mas era de noite
e por isso
tu soubeste que era eu
e vieste abrir-te
na escuridão da tua casa.
Ah era de noite
e de súbito
tudo era apenas lábios pálpebras
intumescências cobrindo o corpo de flutuantes
volteios de palpitações trémulas adejando
pelo rosto beijava os teus olhos por dentro.
Beijava os teus olhos pensados
beijava-te pensando
e estendia a mão
sobre o meu pensamento corria para ti
minha praia jamais alcançada
impossibilidade desejada

de apenas poder pensar-te.

São mil e umas
as noites em que não bato à tua porta
e vens abrir-me.

Ana Hatherly

terça-feira, janeiro 16, 2007

Seria o amor português

Muitas vezes te esperei, perdi a conta,
longas manhãs te esperei tremendo
no patamar dos olhos. Que me importa
que batam à porta, façam chegar
jornais, ou cartas, de amizade um pouco
- tanto pó sobre os móveis tua ausência.

Se não és tu, que me pode importar?
Alguém bate, insiste através da madeira,
que me importa que batam à porta,
a solidão é uma espinha
insidiosamente alojada na garganta.
Um pássaro morto no jardim com neve.

Nada me importa; mas tu enfim me importas.
Importa , por exemplo, no sedoso
cabelo poisar estes lábios aflitos.
Por exemplo: destruir o silêncio.
Abrir certas eclusas, chover em certos campos.
Importa saber da importância
que há na simplicidade final do amor.

Comunicar esse amor. Fertilizá-lo.
"Que me importa que batam à porta..."
Sair de trás da própria porta, buscar
no amor a reconciliação com o mundo.

Longas manhãs te esperei, perdi a conta.
Ainda bem que esperei longas manhã
se lhes perdi a conta, pois é como se
no dia em que eu abrir a porta
do teu amor tudo seja novo,
um homem uma mulher juntos pelas formosas
inexplicáveis circunstâncias da vida.

Que me importa, agora que me importas,
que batam , se não és tu, á porta?

Fernando Assis Pacheco

segunda-feira, janeiro 08, 2007

Lembrança de perder tudo


Natalie Shau

o teu rosto transformou-se na noite interminável
que atravessa cada tarde, cada tarde, cada tarde
interminável.

o rio de fumo que levava o teu nome para as
estrelas dentro de dentro de dentro
da minha tristeza.

e o teu rosto era tudo o que tinha. e o teu nome era
tudo o que tinha. tu eras tudo. tudo. e tudo é agora
mais do que tudo.

José Luís Peixoto

domingo, janeiro 07, 2007



A nossa vida? Uma gota de orvalho numa folha de figueira.
Vai cair no chão e não há nada que possa prendê-la.

Casimiro de Brito

sábado, janeiro 06, 2007


Ginger


Oh! alto e baixo em círculos e rectas acima de nós, em redor de nós as
palavras voam. E às vezes pousam.

Cecília Meireles

quinta-feira, janeiro 04, 2007


Velislava Georgieva

uma leve tontura
uma névoa
um aturdimento

o coração parou

e não deste conta que morri


maria josé quintela

quarta-feira, janeiro 03, 2007


Velislava Georgieva

a véspera de cada ausência
é um canteiro de lábios onde apetece morrer

Ester Guedes (Cartografia das Águas)

sexta-feira, dezembro 29, 2006

Retrato de uma morte...

hoje ouvi morrer uma noite

tu chegavas de tão longe que eu não te podia tocar
como se viesses de um sonho ou de uma mentira
o teu corpo era cruel como o nevoeiro
e onde ardia o amor eu era apenas um corpo

algum dia ouviste morrer uma noite
uma água de mágoa tritura os pulsos
um ruído trespassado desabita o coração

esfinges ocupam o quarto
a lua permanece raios decepados
abraço o teu corpo onde me sobrevivo
e adormeço futuro contra a luz

do amor de tão antes onde te espero
vejo um fantasma abrir um corpo de voz
e sangrar sobre a noite esvaziado

ninguém se levanta dentro do seu próprio coração

Pedro Sena-Lino