segunda-feira, maio 29, 2006


Gabina

Nada mudou. Ao fim de tantos anos, o meu
passado é ainda o mesmo passado - nenhum
rosto diferente para desviar o rio da memória,
nenhum nome depois. Para te esquecer,

devia ter partido há muito tempo, como viajam
as aves de verão em verão. E tentei; mas as malas
abertas sobre a cama eram livros abertos, e eu
nunca fechei um livro antes do fim. Por ter

ficado, nada mudou jamais - e o meu passado é
ainda o nosso passado; e o rosto que tinha antes
de me deixares é o que o espelho me devolve no
presente...

Maria do Rosário Pedreira

sábado, maio 27, 2006

Antes da palavra

hesito muito antes da palavra.

por isso te digo: hesito e morro e nasço.
e corro para a rua com a força de quem
vai anunciar gritar chamar dizer
mas lá fora sorrio apenas
enquanto caminho para um banco
de jardim, devagarinho,
como se por um momento
eu soubesse de tudo
e tudo tivesse o mesmo nome.

Vasco Gato

quarta-feira, maio 24, 2006

Adágio



Ai quanto caminho andado
desde o primeiro poema
quanto furor amassado
com mãos de alegria e pena
ai quanto caminho andado
serena.

Chamo por ti mas tu não vens
dentro de mim te chamo
mas tu não estás
mas tu não vês
meu amor tu não és
quem amo.

Ai quanto caminho andado
sozinha dentro de mim
quanto amor ensanguentado
quanto arrancado jardim
ai quanto caminho andado
sem fim.

Ary dos Santos

terça-feira, maio 23, 2006

amor

O que será:
este labirinto de perguntas
e resposta alguma,
este insistente rugir
de pássaros, este abrir
as jaulas, soltar o bicho
novelo que há em nós,
delicado/feroz morder
(deixa sangrar)
o outro bicho (deixa, deixa)
e toda esta parafernália
a parecer truque enquanto
obsidiante você mente
embora acreditando nas mentiras
e eu uso os piores estratagemas
para cobrir-me a retirada
desse vicioso campo de batalha.

Olga Savary

domingo, maio 21, 2006

Conta-mo outra vez

Conta-mo outra vez, é tão formoso
que não me canso nunca de escutá-lo.
Repete-mo de novo, os dois da história
foram felizes até vir a morte,ela não foi infiel, ele nem
se lembrou de enganá-la. E não esqueças,
apesar do tempo e dos problemas,
todas as noites sempre se beijavam.
Conta-mo mil vezes, se faz favor:
é a história mais bela que conheço.

Amalia Bautista

quarta-feira, maio 17, 2006

Despedida

Despeço-me de ti, as pernas cruzadas sobre o braço do sofá da sala, a música ao fundo, florescida a orquídea, o cão a dormir sem solenidade. A fumaça do cigarro lenta no ar, e nas mãos uma taça de vinho tinto, dos que tu gostas e eu também gosto.

Despeço-me de ti em silêncio . Despeço-me de ti para não ter que me despedir de mim . Uma pessoa não pode viver na dor e na falta a esperar que o tempo volte.

Despeço-me de ti ao som da memória, da visão clara do teu corpo enrodilhado no meu, da visão clara do teu amor colado ao meu. Do teu pranto.
Tantos anos me custaram despedir-me de ti. Tantos anos a conversar contigo sozinha no quarto, a querer beijar-te, a quase ver os teus olhos desejosos a meterem-se nos meus. Memórias.

O amor não é memória. O amor dobra a esquina e temos nosso coração nas mãos. E queremos ofertá-lo a um estranho. Porque por ele o coração saltou-nos do peito. E seus olhos miúdos têm um brilho oculto pela tristeza . E seus gestos diferentes nos atraem, Seu corpo nos chama e o nosso quer atendê-lo. E uma beleza fulge naquele rosto. Nos nossos rostos. E um estranho é sempre um estranho, não és tu, nunca será. Mas a vida usa palavras fora do comum às vezes. E nós, todos nós, queremos amar.

Não é morte, o amor. Nem tempo, nem metafísica, nem psicologias. O amor tem vontade própria, não quer ser explicado. Não vive de reminiscências, elas são apenas a lembrança do que ele um dia foi.

Amor é presente, agora, já. Vida desfraldada , mergulhada no mar, a escalar as encostas das montanhas, a embrenhar-se na selva. O corpo e o que mais pode haver além dele, dedicados a isso. Tu sabes.

Despeço-me de ti ao som de um cello, de séculos atrás, que tu me deste.

Um beijo e adeus.

Silvia Chueire

terça-feira, maio 16, 2006

Meu querido II


Ira Bordo

As mulheres nunca perdoam a um homem tê-las humilhado.
Não, não lhes resta nada de vós, senão a impressão muito distante de ter vivido uns momentos fulgurantes com um homem que só se parece convosco.
Um super-homem que está fechado para sempre no tabernáculo da sua memória.

Marie-Claude Pauwels

sábado, maio 13, 2006

Oración

Líbranos, Señor,
de encontrarnos
años después,
con nuestros grandes amores.

Cristina Peri Rossi

sexta-feira, maio 12, 2006



...procuremos para além da ausência
na luz que há-de haver depois da cinza
o minucioso esforço da alegria.

Luís Soares Barbosa

quarta-feira, maio 10, 2006


José Marafona

Esta noite o vento ceifa os bosques e
uma raiva sacode a terra. Se a voz
do mar chamasse pelas velas, os estreitos
aguardariam um naufrágio. E se dissesses
o meu nome eu morreria de amor.

Devo, por isso, afastar-me de ti - não
por ter medo de morrer ( que é de já não
o ter que tenho medo), mas porque a chuva
que devora as esquinas é a única canção
que se ouve esta noite sobre o teu silêncio.

Maria do Rosário Pedreira

terça-feira, maio 09, 2006

corpo nu


Philippe Pache

…é com o corpo nu que te escrevo.
o que não importa.
não sabes quem sou
- alguma vez soubeste?

silvia chueire

segunda-feira, maio 08, 2006

conhecer



conheço cada intimo gesto teu.
és uma transparência

ainda quando foges,
quando calas,
quando morres.

conheço cada intimo gesto teu,
nunca te esqueças.

silvia chueire

sábado, maio 06, 2006

Vem


Sweetcharade

Vem
Caudaloso como um rio
Que procura destino e foz
Vem
Assombroso como a luz
Na hora final no ocaso
Vem
Inesperado como a chuva
Em dia quente de estio.
Serei calma e constante
Permanente e amante
Teu abrigo
Tua certeza.

encandescente,
aqui

quarta-feira, maio 03, 2006


Gerhardt Thompson

deitei-me neste mar
que é teu
que é meu,
e restei lá.
a um só tempo oceano e horizonte.

as ilhas demarcam limites,
só para que não nos percamos
de nós mesmos.

ah, mas nos perdemos.
uma alucinação breve :
é aí que pertenço
todas as vezes que te pertenço.

delírio marítimo
da tua boca
nadando em mim.

sempre soube que sou mar.

Silvia Chueire