quinta-feira, março 30, 2006

escreve



Escreve, se puderes, pois meu corpo oscila, veloz, no círculo
do vento
escreve antes que o sol sangre de mim.

Ana Marques Gastão

quarta-feira, março 29, 2006


sweetcharade

Bebi entre os teus flancos a loucura

de não poder viver longe de ti:
és a sombra da casa onde nasci,
és a noite que à noite me procura...

David Mourão Ferreira

terça-feira, março 28, 2006


Lilya Cornel

Vieste como um barco carregado de vento, abrindo
feridas de espuma pelas ondas. Chegaste tão depressa
que nem pude aguardar-te ou prevenir-me; e só ficaste
o tempo de iludires a arquitectura fria do estaleiro

onde hoje me sentei a perguntar como foi que partiste,
se partiste,
que dentro de mim se acanham as certezas e
tu vais sempre ardendo, embora com um lume
de cera, lento e brando, que já não derrama calor.

Tenho os olhos azuis de tanto os ter lançado ao mar
o dia inteiro, como os pescadores fazem com as redes
e não existe no mundo cegueira pior do que a minha:
o fio do horizonte começou ainda agora a oscilar,
exausto de me ver entre as mulheres que se passeiam
no cais como se transportassem no corpo o vaivém
dos barcos. Dizem-me os seus passos

que vale a pena esperar, porque as ondas acabam
sempre por quebrar-se junto das margens. Mas eu sei
que o meu mar está cercado de litorais, que é tarde
para quase tudo. Por isso, vou para casa

e aguardo os sonhos, pontuais como a noite.

Maria do Rosário Pedreira

quinta-feira, março 23, 2006

Um amor proibido


Estou silenciosa, de frente para a ponte
atrevendo-me, sem me atrever a atravessá-la
Tu olhas-me carinhoso, do outro lado,
atrevendo-te, sem te atreveres a atravessá-la

o meu coração mantém-se embrulhado em
seda branca
Incapaz de respirar ou ver

Estou parada neste homem, sem me mover,
à espera

Uma poeira laranja invade devagar
esta paisagem estrangeira
e o meu coração estoira

Então, enquanto o dia entra pela noite
eu abro a gaveta da minha bravura
e firme passo sobre o preconceito das gentes
Um passo
depois outro
amorosamente atravessando a ponte

Maria João

terça-feira, março 21, 2006


















Michal Macku

A pressa
com que se despe

Nem na alma lhe apetece
qualquer veste

A pressa
com que se despe

Até da carne e da pele
se pudesse

David Mourão Ferreira

sábado, março 18, 2006



Debruça-te, amor
e colhe-me a manhã

bebe-me o hálito
morde-me os gemidos

eu sou o copo
de cicuta

(o vinho)

com o qual envenenas os sentidos

Maria Teresa Horta

quarta-feira, março 15, 2006

Eu sei, não te conheço, mas existes ...

Eu sei, não digas, deixa-me inventar-te.
Não é um sonho, juro, são apenas as minhas mãos
sobre a tua nudez
como uma sombra no deserto.
É apenas este rio que me percorre há muito e desagua em ti,
porque tu és o mar que acolhe os meus destroços.
É apenas uma tristeza inadiável, uma outra maneira de habitares
em todas as palavras do meu canto...

Joaquim Pessoa

terça-feira, março 14, 2006

Estrañas formas


Natalie Shau

Extrañas formas tiene el amor.
Las galas del deseo se nutren
de harapos de desdicha y de frío.
Por debajo del gozo respiran
los días del hastío futuro.

Toda humedad acaba en desierto,
todo cuerpo en ceniza -me dices
cuando aún aletea el placer
por mi piel como un tímido insecto.
Todo acaba -repites.

Te miro
como se mira a un dios cruel y exacto.
De repente me siento muy sola.

Josefa Parra



domingo, março 12, 2006

porque tenho saudades

porque tenho saudades
e tudo parece inútil
escrevo um poema

porque tenho saudades
escrever um poema qualquer
parece plausível
na evidência da falta

porque tenho saudades
o poema é o desconsolo
as palavras morrem
na minha garganta
neste dia claro de verão

porque tenho saudades
falar disto é vazio
como a casa sem ti

porque tenho saudades
perco os olhos no mar
como se me perdesse toda nele

silvia chueire

quinta-feira, março 09, 2006


Piotr Rosinsky

Áspera e vulgar era a manhã
quando de novo à minha mesa te sentaste: falaste-me do mar,
do teu equilíbrio na crista das ondas e de um país ao sul,
onde em júbilo incontrolado, novas praias te esperavam

...

Afinal foi numa vulgar manhã, que uma vez mais, com astúcia,
te armadilhei: escondidos foram, num dos teus bolsos,
pedaços do meu destino...

Victor Oliveira Mateus

quarta-feira, março 08, 2006

Não me importa nada

Não me importa nada que as mulheres tenham seios como magnólias ou como figos secos; uma pele de pêssego ou de lixa. Não dou nenhuma importância ao facto de que amanheçam com um hálito afrodisíaco ou com um hálito insecticida; mas isso sim – e nisso sou irredutível – não lhes perdoo, sob nenhum pretexto, que não saibam voar. Se não sabem voar perdem o tempo as que pretendam seduzir-me!

Esta foi – e não outra, a razão porque me apaixonei tão loucamente por Maria Luísa.

Durante quilómetros de silêncio planeávamos uma carícia que nos aproximava do paraíso; durante horas inteiras aninhávamo-nos numa nuvem, como os anjos, e de repente, em saca-rolhas, em folha morta, a aterragem forçada de um espasmo.

Que delícia ter uma mulher tão leve… ainda que nos faça, de vez em quando ver as estrelas!

…sou incapaz de compreender a sedução de uma mulher terrestre, e por mais empenho que ponha em concebê-lo, não me é possível nem tão pouco imaginar que possa fazer-se amor a não ser voando.

Oliverio Girondo


( a todas as mulheres que sabem voar...)

segunda-feira, março 06, 2006

Cosas que no tendremos


Scott Eyechart

Cosas que no tendremos:

Las mañanas de abril largas de amor y sueño.
Las tardes de noviembre con lluvia interminable.
Las noches del verano tercamente estrelladas.
Todas las madrugadas dulcísimas de otoño.

Cosas que me he perdido:

No sabré del sabor de tu boca dormida.
No acunaré a tus hijos. No beberé tu vino.
No lloraré contigo viendo ningún ocaso.
No me amanecerá tu vientre entre las sábanas.

Tengo todo un tesoro de lagunas y ausencias,
un muestrario completo de páginas en blanco.

Josefa Parra

sábado, março 04, 2006



Porque o amor é nuvem, por cima de mim,
E correntes, por debaixo.
E afunda-me os pés,
Ou cai sobre mim como um dilúvio.
Como uma cidade, como uma tribo,
Me envolve a paixão;
Encontra a nostalgia
O seu albergue e o seu descanso
Aqui no meu coração.
E em torno de mim há somente
Ventos rodopiando

Abu Nuwas

sexta-feira, março 03, 2006

A Mão



A mão
que no fundo da noite chama,

num sopro mais ligeiro
que o desejo

ou o cheiro
do feno quente ainda
da última gota de água,

a mão
esquece a árvore onde fez ninho

e vai pousar
entre o frio dos joelhos

devagar.

Eugénio de Andrade

quarta-feira, março 01, 2006


Ira Bordo

Pelo rio do meu corpo
o barco à vela dos teus olhos.

O beijo amadurece.

Que fazer
das palavras que sobram?

R. Lobato Faria