sexta-feira, abril 28, 2006


Jens Schade

...viajas pelo mundo a pretexto de amar mulheres e as assassinas para poderes escrever. E eu ainda estou viva. De tudo que fiz, o que ainda posso fazer por ti é oferecer-te uma faca de bom fio.
Viajas e as matas porque é preciso continuar o romance. Pensas que é o único modo de fazê-lo.
Tu as enganas com um amor literário e um sexo afoito que duram sete dias precisos. Fazes uns intervalos a embriagar-te para não pensar . Depois as torturas e finalmente as matas. Logo tens que voltar ao teu computador, à escrita e a esta paixão desmedida que tens por ti mesmo. Até a próxima viagem, até a próxima mulher.

Olhei para o céu, ainda muito azul. e para baixo, as folhas secas das amendoeiras. O outono amanheceu numa nitidez mortal.

- Por que não ficas ? e ofereci-te a faca.

Silvia Chueire

quinta-feira, abril 27, 2006

Ser, parecer


Ira Bordo

Entre o desejo de ser
e o receio de parecer
o tormento da hora cindida

Na desordem do sangue
a aventura de sermos nós
restitui-nos ao ser
que fazemos de conta que somos

Mia Couto

quarta-feira, abril 26, 2006

Desencontro


Christine Meadows

No avesso das palavras
na contrária face
da minha solidão
eu te amei
...

E amei-te sem saberes
amei-te sem o saber
amando de te procurar
amando de te inventar

No contorno do fogo
desenhei o teu rosto
e para te reconhecer
mudei de corpo
troquei de noites
juntei crepúsculo e alvorada

Para me acostumar
à tua intermitente ausência
ensinei às timbilas
a espera do silêncio

Mia Couto

segunda-feira, abril 24, 2006

Sem dizer adeus



...Havia também a dor que ele me deixava. Tão grande que eu precisava de tomar sucessivas aspirinas para aplacá-la. Tão feroz que eu tinha de me amparar nos móveis para não cair. No entanto, até aquela dor vinda dele um dia me abandonaria. E eu lutaria para me agarrar a ela, aos farelos da agonia, às migalhas do sofrimento, para não ficar totalmente esvaziada, calcinada.
Eu só tinha vinte anos, mas já sabia que a dor é melhor que o nada.

Heloneida Studart

segunda-feira, abril 10, 2006

E uma paixão


Sweetcharade

visita-me enquanto não envelheço
toma estas palavras cheias de medo e surpreende-me
com teu rosto de Modigliani suicidado

tenho uma varanda ampla cheia de malvas
e marulhar das noites povoadas de peixes voadores
vem

ver-me antes que a bruma contamine os alicerces
as pedras nacaradas deste vulcão a lava do desejo
subindo à boca sulfurosa dos espelhos
vem

antes que desperte em mim o grito
dalguma terna Jeanne Hébuterne a paixão
derrama-se quando tua ausência se prende às veias
prontas a esvaziarem-se do rubro ouro

perco-te no sono das marítimas paisagens
estas feridas de barro de quartzo
os olhos escancarados para a infindável água
vem

com teu sabor de açúcar queimado em redor da noite
sonhar perto do coração que não sabe como tocar-te

Al Berto

quarta-feira, abril 05, 2006

Praia do Paraíso

Era a primeira vez que nus os nossos corpos
apesar da penumbra à vontade se olhavam

surpresos de saber que tinham tantos olhos
que podiam ser luz de tantos candelabros

Era a primeira vez Cerrados os estores
só o rumor do mar permanecera em casa

E sabias a sal E cheiravas a limos
que tivessem ouvido o canto das cigarras

Havia mais que céu no céu do teu sorriso
madrugada de tudo em que sonhavas

Em teus braços tocar era tocar os ramos
que estremecem ao sol desde que o mundo é mundo

É preciso afinal chegar aos cinquenta anos
para se ver que aos vinte é que se teve tudo

David Mourão Ferreira