...viajas pelo mundo a pretexto de amar mulheres e as assassinas para poderes escrever. E eu ainda estou viva. De tudo que fiz, o que ainda posso fazer por ti é oferecer-te uma faca de bom fio. Viajas e as matas porque é preciso continuar o romance. Pensas que é o único modo de fazê-lo. Tu as enganas com um amor literário e um sexo afoito que duram sete dias precisos. Fazes uns intervalos a embriagar-te para não pensar . Depois as torturas e finalmente as matas. Logo tens que voltar ao teu computador, à escrita e a esta paixão desmedida que tens por ti mesmo. Até a próxima viagem, até a próxima mulher. Olhei para o céu, ainda muito azul. e para baixo, as folhas secas das amendoeiras. O outono amanheceu numa nitidez mortal. - Por que não ficas ? e ofereci-te a faca. Silvia Chueire
Entre o desejo de ser e o receio de parecer o tormento da hora cindida Na desordem do sangue a aventura de sermos nós restitui-nos ao ser que fazemos de conta que somos Mia Couto
...Havia também a dor que ele me deixava. Tão grande que eu precisava de tomar sucessivas aspirinas para aplacá-la. Tão feroz que eu tinha de me amparar nos móveis para não cair. No entanto, até aquela dor vinda dele um dia me abandonaria. E eu lutaria para me agarrar a ela, aos farelos da agonia, às migalhas do sofrimento, para não ficar totalmente esvaziada, calcinada. Eu só tinha vinte anos, mas já sabia que a dor é melhor que o nada. Heloneida Studart
visita-me enquanto não envelheço toma estas palavras cheias de medo e surpreende-me com teu rosto de Modigliani suicidado
tenho uma varanda ampla cheia de malvas e marulhar das noites povoadas de peixes voadores vem
ver-me antes que a bruma contamine os alicerces as pedras nacaradas deste vulcão a lava do desejo subindo à boca sulfurosa dos espelhos vem
antes que desperte em mim o grito dalguma terna Jeanne Hébuterne a paixão derrama-se quando tua ausência se prende às veias prontas a esvaziarem-se do rubro ouro
perco-te no sono das marítimas paisagens estas feridas de barro de quartzo os olhos escancarados para a infindável água vem
com teu sabor de açúcar queimado em redor da noite sonhar perto do coração que não sabe como tocar-te
Era a primeira vez que nus os nossos corpos apesar da penumbra à vontade se olhavam surpresos de saber que tinham tantos olhos que podiam ser luz de tantos candelabros Era a primeira vez Cerrados os estores só o rumor do mar permanecera em casa E sabias a sal E cheiravas a limos que tivessem ouvido o canto das cigarras Havia mais que céu no céu do teu sorriso madrugada de tudo em que sonhavas Em teus braços tocar era tocar os ramos que estremecem ao sol desde que o mundo é mundo É preciso afinal chegar aos cinquenta anos para se ver que aos vinte é que se teve tudo David Mourão Ferreira