Nada mudou. Ao fim de tantos anos, o meu passado é ainda o mesmo passado - nenhum rosto diferente para desviar o rio da memória, nenhum nome depois. Para te esquecer, devia ter partido há muito tempo, como viajam as aves de verão em verão. E tentei; mas as malas abertas sobre a cama eram livros abertos, e eu nunca fechei um livro antes do fim. Por ter ficado, nada mudou jamais - e o meu passado é ainda o nosso passado; e o rosto que tinha antes de me deixares é o que o espelho me devolve no presente... Maria do Rosário Pedreira
por isso te digo: hesito e morro e nasço. e corro para a rua com a força de quem vai anunciar gritar chamar dizer mas lá fora sorrio apenas enquanto caminho para um banco de jardim, devagarinho, como se por um momento eu soubesse de tudo e tudo tivesse o mesmo nome.
Ai quanto caminho andado desde o primeiro poema quanto furor amassado com mãos de alegria e pena ai quanto caminho andado serena. Chamo por ti mas tu não vens dentro de mim te chamo mas tu não estás mas tu não vês meu amor tu não és quem amo. Ai quanto caminho andado sozinha dentro de mim quanto amor ensanguentado quanto arrancado jardim ai quanto caminho andado sem fim. Ary dos Santos
O que será: este labirinto de perguntas e resposta alguma, este insistente rugir de pássaros, este abrir as jaulas, soltar o bicho novelo que há em nós, delicado/feroz morder (deixa sangrar) o outro bicho (deixa, deixa) e toda esta parafernália a parecer truque enquanto obsidiante você mente embora acreditando nas mentiras e eu uso os piores estratagemas para cobrir-me a retirada desse vicioso campo de batalha. Olga Savary
Conta-mo outra vez, é tão formoso que não me canso nunca de escutá-lo. Repete-mo de novo, os dois da história foram felizes até vir a morte,ela não foi infiel, ele nem se lembrou de enganá-la. E não esqueças, apesar do tempo e dos problemas, todas as noites sempre se beijavam. Conta-mo mil vezes, se faz favor: é a história mais bela que conheço.
Despeço-me de ti, as pernas cruzadas sobre o braço do sofá da sala, a música ao fundo, florescida a orquídea, o cão a dormir sem solenidade. A fumaça do cigarro lenta no ar, e nas mãos uma taça de vinho tinto, dos que tu gostas e eu também gosto.
Despeço-me de ti em silêncio . Despeço-me de ti para não ter que me despedir de mim . Uma pessoa não pode viver na dor e na falta a esperar que o tempo volte. Despeço-me de ti ao som da memória, da visão clara do teu corpo enrodilhado no meu, da visão clara do teu amor colado ao meu. Do teu pranto. Tantos anos me custaram despedir-me de ti. Tantos anos a conversar contigo sozinha no quarto, a querer beijar-te, a quase ver os teus olhos desejosos a meterem-se nos meus. Memórias. O amor não é memória. O amor dobra a esquina e temos nosso coração nas mãos. E queremos ofertá-lo a um estranho. Porque por ele o coração saltou-nos do peito. E seus olhos miúdos têm um brilho oculto pela tristeza . E seus gestos diferentes nos atraem, Seu corpo nos chama e o nosso quer atendê-lo. E uma beleza fulge naquele rosto. Nos nossos rostos. E um estranho é sempre um estranho, não és tu, nunca será. Mas a vida usa palavras fora do comum às vezes. E nós, todos nós, queremos amar. Não é morte, o amor. Nem tempo, nem metafísica, nem psicologias. O amor tem vontade própria, não quer ser explicado. Não vive de reminiscências, elas são apenas a lembrança do que ele um dia foi. Amor é presente, agora, já. Vida desfraldada , mergulhada no mar, a escalar as encostas das montanhas, a embrenhar-se na selva. O corpo e o que mais pode haver além dele, dedicados a isso. Tu sabes. Despeço-me de ti ao som de um cello, de séculos atrás, que tu me deste. Um beijo e adeus. Silvia Chueire
Ira Bordo As mulheres nunca perdoam a um homem tê-las humilhado. Não, não lhes resta nada de vós, senão a impressão muito distante de ter vivido uns momentos fulgurantes com um homem que só se parece convosco. Um super-homem que está fechado para sempre no tabernáculo da sua memória. Marie-Claude Pauwels
Esta noite o vento ceifa os bosques e uma raiva sacode a terra. Se a voz do mar chamasse pelas velas, os estreitos aguardariam um naufrágio. E se dissesses o meu nome eu morreria de amor. Devo, por isso, afastar-me de ti - não por ter medo de morrer ( que é de já não o ter que tenho medo), mas porque a chuva que devora as esquinas é a única canção que se ouve esta noite sobre o teu silêncio. Maria do Rosário Pedreira
Vem Caudaloso como um rio Que procura destino e foz Vem Assombroso como a luz Na hora final no ocaso Vem Inesperado como a chuva Em dia quente de estio. Serei calma e constante Permanente e amante Teu abrigo Tua certeza.
deitei-me neste mar que é teu que é meu, e restei lá. a um só tempo oceano e horizonte. as ilhas demarcam limites, só para que não nos percamos de nós mesmos. ah, mas nos perdemos. uma alucinação breve : é aí que pertenço todas as vezes que te pertenço. delírio marítimo da tua boca nadando em mim. sempre soube que sou mar. Silvia Chueire